sexta-feira, 23 de março de 2012

A imagem do texto e o texto da imagem

Era uma caixa velha, dentro de sala velha, de uma casa velha, numa rua velha de um bairro velho numa velha cidade. Era, quase tudo, esquecido. Mas mesmo assim, a curiosidade da menina a convenceu de que ali ela encontraria algo novo, incrivelmente interessante. Teve que subir numa cadeira e ficar na ponta dos pequenos pés e esticar os dedinhos para alcançar a grande caixa de papelão coberta de papeis coloridos colados. Depois de voltar à segurança do chão, assoprou com força para tirar a poeira e leu, com vagar, a palavra que se repetia infinitamente em cada um dos papéis.

- Le... Lem... Lembra... Lembranças! - disse, por fim, talvez um pouco alto demais

Esperou alguns instantes antes de continuar. Precisava que estivesse tudo em silêncio. Retirou a tampa e começou a remexer seu conteúdo. A primeira coisa que tirou foi um maço de cartas com uma letra estranha, que parecia toda feita a máquina e, as vezes, quase atravessava o papel. No fim, uma assinatura grande e cheia de voltinhas. Mas aquilo não era interessante. Logo depois, veio uma boneca. Estava gasta, pobrezinha. Seu vestidinho, que era rosa, já tinha se tornado branco, amarelado. Seus cabelos loiros eram um emaranhado. Fazendo par, um ursinho de pelúcia vestido para festa, com uma bonita gravata borboleta — agora já meio murcha — e uma cartola que era quase do seu tamanho. Botou os dois sentados juntos a sua frente. Que bonito era aquilo, aquelas tais de lembranças! Remexeu mais um pouco e, do fundo da caixa, veio mais um papel. Uma fotografia! Não tinha muitas cores e parecia ser bem antiga. Será que era mais velha que a boneca. Será que, naquela época, as pessoas e as coisas eram todas assim, meio mortas, meio... marrons? Esperava que não. Analisou cada um dos rostos e aí viu. Era ela alí! Com os cabelos presos, um sorrisinho meio sem graça. Mas o que ela estava fazendo naquela foto antiga? Será que ela tinha vivido naquela época antiga e tinha esquecido de tudo. E que ela não envelhecia? Vai ver, era uma vampira! Ou mesmo um um fantasma. Aí, e se ela fosse um espírito perdido? E porque não lembrava de estar naquele quadro?

Aquela idéia era assustadora. Como podia ela ser ela e estar ali naquela fotografia? Ou mesmo, ela não era ela! Deu um pulo, saindo daquele estado de choque e saiu correndo, sem nem perceber que ainda tinha a foto em mãos.

Mais tarde, naquele mesmo dia, a vó, dona de tudo aquilo que era velho, encontrou no chão aquela velha fotografia e sentiu o coração apertado. Bastou um relance para os olhos encherem de lágrimas e embaçarem os grossos óculos de grau que a idade impusera. Parou ali, no meio da sala, com a foto nas mãos. Até que sua neta, a única coisa nova em toda aquele cidade, veio correndo e reparou o que a vó tinha em mãos.

- Vovó! Vovó! Vózinha! Não está vendo que eu estou aí? Vózinha, eu sou um fantasma!

segunda-feira, 19 de março de 2012

"Poème de l'amour et de la mer"

I. La Fleur des eaux
Não sei se é a bebida, o sotaque... ou se é mesmo 'só' Paris... Talvez seja o ar da cidade, que mesmo sujo (ainda) consegue exalar um misto de romance e luz, dentre as nuvens que cercam os céus no período invernal... "Ah Paris...", eu suspiro, pensando que estou finalmente compreendendo a magia do lugar. As ondas batem no barco. Estou no Sena e nem acredito. Embalada por um jazz instrumental suave e um gosto forte de champanhe na boca, olho pela janela e pergunto como posso me sentir em casa, estando tão longe do lar. Mas o Sena brilha aos meus olhos enquanto desisto de encontrar a lógica de sentimentos inexplicáveis.
"É lindo demais", sussurro, mais para mim do que para o rapaz ao meu lado. Mas não o impede de me olhar e sorrir. Não entende minha língua. Quase nada, entretanto, visivelmente compartilha de meu entusiasmo.

Ia. Interlude
O barco estava abarrotado, mas o barulho não penetrava nosso silêncio. "Estou em Paris", repeti, agora em inglês, brindando com o 'estranho'.
"Cheers", ele disse. Também estava fascinado, chocado com a profundidade da beleza parisiense, a qual apenas a luz noturna deixava transparecer.
E eu que achava a impaciência de Londres atrativa... Mal sabia eu da charmosa lentidão de Paris, com seus vinhos, luzes e passarelas urbanas... O uso do guarda-chuva está fora de questão. Os sortudos de verdade ainda hão de sentir as gotas de chuva escorrendo pelos fios de cabelo... A moda em Paris é existir, comer um bom croissant, vestir a roupa que o humor ditar e sair à noite, andando pela ruas, sem compromisso ou destino definido.
Era assim que eu me sentia: "livre, leve e solta", como se nenhuma de minhas responsabilidades pesasse o suficiente para me prender. Marco, eu podia ver, sentia-se da mesma forma. As adoráveis covinhas em suas bochechas e a maneira casual com a qual deixava o vento bagunçar seus cabelos negros, ainda molhados pela chuva, denunciavam seu estado de espírito.
Morava em Paris há "thirteen years", declarou em um inglês perfeito, e cada noite era como se a visse pela primeira vez.

"Isn't that what poets would call 'love'?"

Encarei-o. Conhecia-mo-nos há pouco mais de sete dias, então como poderíamos ser tanto um para o outro? Irmãos, amigos, amantes... Em verdade, nunca nos classificamos. Sempre fomos, desde o início, mais do que mera convenção.

"Maybe"

II. La Mort de l'amour
Nossa voz era mansa. A conversa, tranquila. Seguíamos ambos no ritmo cambaleante do Sena, sem pressa de aportar. Tomei mais um gole de champanhe, apreciando o toque da taça de cristal em meus lábios. Sorri ao perceber-me sendo observada. Marco exalava felicidade. Pela primeira ver, segundo ele, presenciava meus "olhos brilhantes de criança aventureira". Chamei-o de bobo e ri, sabendo que não entenderia e tampouco se incomodaria com isso.
Parei de rir, de súbito, e suspirei, extasiada pela presença do 'estranho'. Uma tristeza pairava no ar. Sabíamos que teria um fim - sempre tem. A presença não seria eterna, assim como o brilho do Sena desapareceria com a chegada da manhã...

"L'amour..."



obs.: O título (e os 3 subtítulos) fazem referência à ópera "Poème de l'amour et de la mer", de Ernest Chausson

domingo, 18 de março de 2012

Já posso acender meu cigarro.

Chuva me faz querer fumar - e fazer sexo - e esse apartamento cheio de nada me irrita. Tudo ainda está dentro de caixas, malas e enormes embalagens de plástico bolha. Odeio mudanças. Uma incrível quantidade de poeira consegue invadir os lugares mais imporváveis e há sempre coisas perdidas. Tenho certeza que dessa vez será um dos meus livros de direito internacional. Ou uma das minhas poucas calças jeans.
O burburinho lá fora diz que já era hora do Daniel ter chegado com a comida - provavelmente de um daqueles restaurantes asiáticos só para entragas e take away - estrangerismo babaca mas sem tradução bonita o suficiente. É incrível como as pessoas fazem barulho ao sair da igreja. Estamos no terceiro andar e ainda dá para ouvir as conversas sobre o sermão do padre dessa noite, a coragem daquela depravada de ir se comungar e todas essas mesquinharias dos bons cristãos. O fato de termos vindo morar em frente a uma igreja seria cômico, não fosse trágico.
Hora de abrir a janela e acender o maldito cigarro. Culpa sua por não chegar na hora e me deixar com fome esperando, então não reclame do cheiro quando entrar. O modo como o vento úmido bate é delicioso, mas aposto que vai acabar estragando todos os fios da casa. Cadê esse maldito? Bem, então, foda-se.
Já posso acender meu cigarro.